Eu explico. A nãoporquevocêéumlabregomongodebilóidequenãosabeoquedizibilidade é a negabilidade credível de que gozam muitas actividades profissionais. No meu local de trabalho há técnicos e programadores de tudo e mais alguma coisa, que são constantemente confrontados com os pedidos absurdos de clientes na implementação desta ou daquela tecnologia ou funcionalidade. Uma típica reunião com a equipa técnica é qualquer coisa deste calibre:
- Queremos dinamizar a experiência do cibernauta adicionando funcionalidades específicas ao nosso site!
- Que funcionalidades tem em mente Sôtor Burocrata?
- Queremos que o botão back do browser redireccione o visitante para a nossa loja online e encha automaticamente o carrinho de compras com todos os produtos do nosso catálogo e lhe debite logo o dinheiro do cartão de crédito!
- Isso é uma ideia revolucionária e extremamente interessante Sôtor Burocrata, infelizmente a tecnologia actual não nos permite implementar essa funcionalidade (que é como quem diz: “Sim, eu sei que a vossa empresa vive às custas de projectos absurdos financiados por fundos comunitários e que provavelmente têm dinheiro suficiente para nos pôr a reescrever os browsers todos para que botão back faça o que quer, mas essa ideia é simplesmente estúpida, portanto não fazemos!”).
- Tem a certeza? Olhe que eu percebo destas coisas, até sou eu que programo o vídeo lá em casa.
- Tenho, Sôtor.
- Bem, se o diz é porque é verdade, você é que é o especialista.
As exigências técnicas inerentes ás tecnologias de informação, conferem ao programador um estatuto respeitável de especialista, o que lhe permite que a sua opinião informada de profissional seja aceite sem reservas.
No design não temos essa sorte.
O designer é tipicamente visto como o tipo que torna as coisa bonitas. Tem um trabalho importante, sem dúvida, mas inconsequente. Se o botão é verde ou azul, tanto faz, o verdadeiro trabalho já foi feito pelos programadores, e as coisas funcionam. O Sôtor Burocrata sabe disto, e anseia pelo momento em que possa meter o bedelho algures no processo, para tentar de alguma forma justificar o seu salário exagerado:
- Queremos dinamizar a experiência do cibernauta adicionando cor ao nosso site!
- O que é que tem em mente Sôtor Burocrata?
- Queremos que ponha na homepage um Pai Natal gigante a piscar o olho, com um letreiro em neon colado ao saco das prendas a dizer “Feliz Natal”!
- Isso é uma ideia revolucionária e extremamente interessante Sôtor Burocrata, especialmente porque estamos em Março. Mas infelizmente vai contra não só o grafismo do site, como de todo o visual limpo, sério e profissional que vocês próprios pediram.
- Tem a certeza? Olhe que eu percebo destas coisas do design. Tanto que no meu BMW topo de gama até pendurei uns dados de peluche no retrovisor e vesti o colete de sinalização no banco. Que carro conduz você?
- Eu conduzo a bicicleta BTT da empresa, gentilmente cedida pelo meu patrão quando me roubaram a minha no bairro degradado onde trabalhava antes... Sôtor.
- Pois. Então ponha lá o Pai Natal a piscar que vai ver que fica engraçado.
Este é o drama da falta de nãoporquevocêéumlabregomongodebilóidequenãosabeoquedizibilidade no design. Não há maneira de explicar ao Sôtor Burocrata o quão disparatada é a sua ideia, sem arriscar perder um cliente. E sem a negabilidade credível e o estatuto respeitável do profissional que sabe do que fala, não serve de nada afirmar “isso que propõe é uma aberração sem descrição, não dá para fazer”, porque no seu entender, o seu estatuto de Sôtor Burocrata torna-o automaticamente mais capaz que o designer em questões de design.
Mas o verdadeiro problema está eventualmente na própria natureza da actividade. Nem um bom design tem benefícios imediatos, nem um mau design é imediatamente catastrófico. O responsável que não entende que estes factores se verificam sim, mas não a curto prazo, fica com a ilusão de que o design é inconsequente. E é esta ilusão que o encoraja a interferir no processo.
Aposto que o Sôtor Burocrata não mandaria bitaites aos cirurgiões durante a sua angioplastia.
Para crédito do Sôtor Burocrata, há que dizer que, sem saber, até pode ter encontrado no Pai Natal gigante a piscar uma importante funcionalidade de segurança. Qualquer hacker que entre no site para o desfigurar, vai achar que este já foi atacado violentamente e que já está desfigurado que chegue, e desiste.
5 comentários:
Herr K
Não acredito: desabafos de artista incompreendido!
Um design pode ser desastroso se envolver letras vermelhas em fundo azul ou verde (ou o inverso): põe-me fisicamente mal disposta, pelo que não compro nada. Um Pai Natal em Março comparado com isso parece-me perfeitamente razoável.
Tornar as coisas feias ou com mau gosto é fácil e há mais que muita gente perfeitamente capaz destas tarefas. Torná-las bonitas não é nada fácil, embora possa parecer (e não é para qualquer um).
Eu conheço pessoas que mandariam bitaites a um cirurgião durante uma angioplastia. Que até perderiam tempo a explicar ao cirurgião como se faz isso e que depois da coisa feita ainda deitariam defeitos (independentemente de ter ou não sobrevivido!!!). Mas acho que se torna claro que eu ando com más companhias!
Realmente.....um pai natal, então e o coelhinho da Páscoa? E os "obinhos"? :))))
Mas vocês não viram o Pai Natal, era tãããão lindo! ;)
Confesso que não percebo essa questão do cirurgião e da angioplastia. Eu não teria a menor dúvida em mandar essas bocas, apresentar sugestões e, se necessário, corrigir os procedimentos do médico, na medida em que… Ah, espera… vocês querem dizer, durante a *minha* angioplastia? Isso é um poco diferente...
Bem visto Nuno. Agora relendo o texto também me pareceu que não estava muito claro que a angioplastia era a do proprio Sôtor Burocrata. Vou já editar.
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